1 Introdução
Winnicott foi, por excelência, o psicanalista que mais se voltou para as questões ambientais e suas interferências. A partir de sua extensa prática como pediatra e analista, ele concluiu não só que o meio ambiente é um fator crucial para o desenvolvimento emocional humano, mas que meio e bebê não se diferenciam no início da vida do lactente. Nos seus primeiros meses de vida, o
bebê vive com a mãe um estado de total dependência e fusionalidade, no qual ele não é capaz de se perceber como um ser uno. Fruto de uma intensa observação clínica, tal constatação perpassa toda a construção teórica winnicottiana e traz consequências radicais ao pensamento psicanalítico. A mais importante delas, para o presente artigo, é a de que a tendência inata do lactente em se desenvolver só se atualizará se este for cuidado por uma mãe suficientemente boa, ou seja, por uma mãe, ou substituta, que naturalmente se coloque no lugar do infante. Desta forma, as tendências espontâneas à integração, à personalização e à realização se atualizarão.
O paradoxo mãe-bebê é apresentado, então, pela evidência de que é a unidade ambiente-bebê que possibilita que ele possa vir a ser. Nunca houve qualquer dúvida de que, no início da vida, o lactente possuísse uma dependência absoluta em relação aos cuidados físicos e emocionais de um adulto. A contribuição singular de Winnicott foi a compreensão de que, sem uma identificação da mãe (ou substituto) pelo bebê, não haveria como a subjetividade do lactente ser construída. Trata-se de uma identificação que promove uma relação para além dos cuidados cotidianos: uma relação pautada no desejo.
A vivência da unidade mãe-bebê só é possível porque, nessa fase, a mãe está num estado psicológico muito especial, ao qual Winnicott dá o nome de preocupação materna primária. Tal estado torna a mãe particularmente preparada para proteger seu filho e para sentir suas necessidades físicas e emocionais. Para que isso ocorra, não é necessário qualquer tipo de preparação intelectual da mãe, muito pelo contrário, trata-se das possibilidades espontâneas da mãe dedicada comum.
Apesar da suposta ingenuidade da terminologia mãe dedicada comum, a qual foi alvo de muitas críticas, Winnicott não concordava com a preposição de que a mãe de um bebê é biologicamente condicionada para a sua tarefa de lidar de modo especial com as necessidades do infante. Sua proposta era trazer esse relevante tema para fora do campo puramente biológico. Era de seu
desejo encontrar um termo que denominasse uma condição muito especial da mãe que a levava a abandonar seu narcisismo e, inconscientemente, sentir as necessidades do seu bebê, tornando-se, assim, o ambiente facilitador para o desenvolvimento emocional de seu filho. Quando criou o conceito de preocupação materna primária, o autor se referia a uma condição psiquiátrica
de sofisticação extrema, comparável a um episódio esquizoide, no qual um determinado aspecto da personalidade toma o poder temporariamente. Seria como uma “doença”, da qual a mulher deveria ter saúde tanto para desenvolver, quanto para recuperar-se dela à medida que o bebê se desenvolve.
2 A teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional primitivo
A tendência à integração – a principal do processo maturacional – faz parte do potencial herdado do bebê e será realizada caso ele vivencie cuidados ambientais suficientemente bons no modo como é segurado/sustentado (holding). A esse respeito, dirá o autor: A tendência a integrar-se é ajudada por dois conjuntos de experiências: a técnica pela qual alguém mantém a criança aquecida, segura-a e dá-lhe banho, balança-a e chama pelo nome, e também as agudas experiências instintivas que tendem a aglutinar a personalidade a partir de dentro. (Winnicott,1945d/2000, p. 224)
Na medida em que o bebê vai tendo seus pedaços juntados, o ambiente facilitador também vai sendo compreendido por ele como uma unidade. Na prática, tais conquistas acontecem gradualmente, indo e vindo repetidamente, sendo alcançadas e perdidas em seguida (Winnicott,1958a/2000, p. 303).
Dessa forma, pedaços da técnica do cuidar, dos rostos vistos e dos cheiros sentidos vão gradualmente se transformar num único ser, que será chamado “mãe” (Winnicott, 1945d/2000, p. 224).
A capacidade da mãe (ou substituto) em se identificar com o lactente e agir espontaneamente em relação a ele está intimamente ligada à experiência dela de ter sido cuidada quando era bebê. Tal experiência deixa marcas, representações, que estão diretamente relacionadas com o modo pelo qual ela poderá segurar seu bebê, um segurar que se expressa pelo corpo, pela voz, pelo olhar. A respeito da mãe, Winnicott (1987e/2006, p. 4) afirma: “(…) ela também já foi um bebê, e traz com ela as lembranças de tê-lo sido; tem, igualmente, recordações de que alguém cuidou dela, e estas lembranças tanto podem ajudá-la quanto atrapalhá-la em sua própria experiência como mãe”.
Obviamente, algumas mulheres podem ser boas mães em outros aspectos, ou serem pessoas criativas e realizadas em outras áreas da vida, mas não terem a “capacidade de contrair essa ‘doença normal’ que lhes possibilita à adaptação sensível e delicada às necessidades do bebê nos primeiros momentos” (Winnicott, 1958n/2000, p. 401). Algumas têm preocupações práticas muito importantes que não permitem sua dedicação integral à maternagem, outras, devido a uma forte identificação masculina, apresentam demasiadas dificuldades em realizar as funções maternas, e há
ainda aquelas que conseguem proporcionar uma adaptação suficientemente boa a um filho, e não para outro. Para Winnicott, trata-se de mães que, “tendo perdido o bonde no estágio mais inicial”, terão uma difícil tarefa de resgatar o que não foi vivido. Em vez de colherem os frutos de um desenvolvimento emocional suficientemente bom, elas terão de adaptar-se às crescentes necessidades do filho por um longo período de tempo, e nada garante que terão êxito nessa difícil tarefa.
Caso clínico
Com o objetivo de relacionar a teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional com a clínica psicanalítica, apresentarei, agora, dois episódios ocorridos ao longo de um atendimento. Trata-se de um menino, com severos traços psicóticos, que atendi dos seus quatro aos seis anos de idade. Descreverei brevemente o histórico de “Pedro”. Segundo as entrevistas realizadas com o seu tio materno, os pais biológicos de Pedro eram alcoólatras e apresentavam graves distúrbios de personalidade. O paciente viveu com sua mãe até completar nove meses de vida, quando ficou aos cuidados de seus avós e tio materno, devido aos maus tratos que vinha sofrendo. Aos dois anos, depois de diversas lutas judiciais, o tio materno de Pedro (a quem chamarei de Paulo) e sua esposa ganharam a guarda da criança.
É Paulo quem, ao procurar atendimento para o sobrinho, relata que Pedro passou os primeiros meses de sua vida abandonado no berço, num quarto escuro, tendo apenas os seus cuidados essenciais atendidos. Segundo ele, era um bebê magro, apático e cheio de assaduras. A família, perplexa com a situação, lutou para tirar a criança da casa da mãe, a qual impedia que o filho fosse cuidado por outros. A boa situação financeira da família permitiu que Pedro frequentasse uma escola particular e aulas de natação. O tio transparecia angústia em relação ao desenvolvimento emocional da criança, mas, ao mesmo tempo, possuía uma postura de negação frente à realidade do problema.
Pedro chega ao meu consultório, aos quatro anos, apresentando balanceios corporais, fixação em objetos giratórios (como ventiladores) e comportamento muito agitado, às vezes agressivo. Sua linguagem oral era muito restrita para a sua idade e em alguns momentos apresentava ecolalia. Não havia qualquer problema físico (neurológico, fisiológico ou sindrômico) que
justificasse seu comportamento, o que demonstrava, numa linguagem winnicottiana, que a falta de um ambiente suficientemente bom, nos primórdios de sua subjetividade, trouxe graves questões emocionais para Pedro. Entre todos os episódios ocorridos nesses quase dois anos de terapia, optei por trazer dois que vão ao encontro do pensamento winnicottiano aqui descrito. O primeiro pode ser entendido como uma necessidade do paciente em experimentar, por meio da transferência, um momento de fusionalidade com o meio. E o segundo, como uma possibilidade de Pedro experimentar uma agonia impensável que foi vivida, mas não experienciada. Ambas as situações foram vivenciadas depois de mais de um ano de atendimento. Vejamos o primeiro. Trata-se de um momento simples, mas marcante no processo terapêutico de Pedro. Já havia algumas semanas que o paciente buscava rápidos, porém profundos momentos de contato corporal. Pedro deitava no meu colo e logo se punha na posição de um bebê, sendo acolhido em meus braços. Estabelecíamos um longo contato visual nessa posição até que ele se levantava e ia brincar de outra coisa. Apenas essa experiência já trazia enorme conforto para ele e proporcionava a experiência de uma adaptação suficientemente boa ainda não vivenciada. Sabemos que o holding, ou o segurar,é uma percepção sutil e intuitiva de necessidades simples do bebê: como ser tomado nos braços ou colocado sobre uma superfície, ser mudado de posição ou ser deixado a sós. No entanto, a mais profunda experiência de holding é vivenciada pela unidade mãe-bebê no chamado contato sem atividade. É nesse encontro de mútua entrega tônica que se criam “as condições necessárias para que se manifeste o sentimento de unidade” entre ambos (Winnicott, 1965n/1983, p. 5), potencializando a experiência da fusionalidade. Nesse sentido, o jogo descrito acima e estabelecido durante
algumas sessões teve o seu momento mais significativo no dia em que Pedro, sugando uma pequena cornetinha de plástico, fechou os olhos e se entregou a um momento simbólico de amamentação. Interpreto tal experiência como um momento de não-integração que ele pôde viver, talvez pela primeira vez, sem medo do colapso. De maneira inconsciente, o contato sem atividade pode ser acessado.
O segundo episódio está intimamente relacionado com o primeiro. Antes de descrevê-lo se faz necessário explicar que havia no consultório uma espécie de armário embutido na parede, praticamente vazio. O armário era profundo, o que possibilitava que Pedro ficasse de pé dentro dele, brincasse ali e muitas vezes me chamasse para acompanhá-lo. Apesar de esse espaço ser largo, não era alto, e eu tinha que permanecer sentada. Brincamos muitas vezes lá dentro e, às vezes, Pedro “pedia” para que eu encostasse a porta. O escuro em que ficávamos no início o deixava muito ansioso, e ele logo saía. Depois de algumas sessões repetindo este jogo, o paciente começou a se familiarizar com 5o escuro e logo iniciamos uma brincadeira musical. Cantávamos, batíamos
palmas e usávamos alguns instrumentos de percussão. Aos poucos, ele foi se aproximando de mim nessa situação e, novamente, deitou no meu colo e se colocou na posição de um bebê. Ao acolhê-lo, Pedro pôde vivenciar o contato sem atividade de forma ainda mais primitiva.
Como foi dito anteriormente, o paciente trazia consigo uma história de total abandono num quarto escuro. As agonias impensáveis vividas, no início de sua vida, mas não experenciadas devido à sua imaturidade egoica, puderam ganhar novo sentido. Ele pôde, pela primeira vez no presente, “experienciar” algo do passado, como nos indica a paradoxal teoria winnicottiana. Ambas as experiências foram vividas já no segundo ano do tratamento. Pedro apresentou melhoras significativas no seu comportamento. Seus ataques de agressividade abrandaram, sua inquietude diminuiu e passou a se
demonstrar mais amável com os outros. Suas estereotipias não sumiram, mas se tornaram menos rígidas.
Acredito que muitos outros avanços poderiam ter sido alcançados caso o tratamento não tivesse sido interrompido. A família de Pedro, no final do segundo ano de terapia, mudou-se para outro estado, o que, infelizmente, inviabilizou a continuidade do tratamento.
Considerações finais
Assim que o bebê nasce – num início teórico –, é possível se afirmar que a personalidade do bebê ainda não está integrada. Para que a integração se realize, se faz necessária a existência de uma mãe-ambiente capaz de manter o mundo subjetivo do bebê constante e seguro. O mundo deve ser confiável e previsível para favorecer o desenvolvimento infantil. A previsibilidade advém de uma mãe que “naturalmente” evita que alguma coisa inesperada atinja o bebê e interrompa a sua necessidade primordial de continuar a ser. O medo de se desintegrar faz parte das agonias impensáveis presentes nos primórdios da subjetividade, assim como o de cair para sempre, o de falhar na vivência de estar no corpo, o de perder a capacidade de se relacionar com os objetos, o de perder o senso do real e outros. Essas agonias primitivas fazem parte do início da vida, visto que o lactente é um “ser imaturo que está continuamente a pique de sofrer uma ansiedade inimaginável” (Winnicott, 1965n/1983, p. 57).
A forma como cada indivíduo lidará com este fato está intimamente relacionada com a existência de um meio acolhedor ou de um meio invasivo. As ansiedades inimagináveis podem ser evitadas pela função vitalmente importante da mãe suficientemente boa, a qual proporciona ao bebê a capacidade de iniciar a maturação do ego sem grandes problemas.
No entanto, se há falhas constantes do ambiente, o ego, que ainda não está suficientemente integrado para suportar falhas, tentará organizar defesas, se estas falharem, o colapso (breakdown) será inevitável.
A descrição acima faz com que entendamos porque nem todos os indivíduos têm a capacidade de viver a não-integração sem medo do colapso. A falta de acolhimento por parte do ambiente pode levar o bebê a ter falhas na organização de sua defesa e, assim, ao colapso. Quando isso ocorre, o bebê sente agonias primitivas assustadoras que, no entanto, não podem ser “experenciadas” devido à imaturidade do ego. Trata-se de mais um paradoxo winnicottiano, o qual aponta para a vivência de um colapso no passado que não pode ser de fato vivido pelo sujeito.
O paciente em questão carregava esse acontecimento no inconsciente, visto que o ego era imaturo demais para abarcar todos os fenômenos na área da onipotência pessoal. Para transformar a vivência original da agonia primitiva em passado, foi preciso que o ego a abarcasse na sua própria experiência. Em termos clínicos e transferenciais, o paciente precisou do suporte do ego auxiliar
do analista que, no caso, ocupou a função materna. Sobre isto, nos dirá Winnicott: “A única maneira de ‘recordar’, neste caso, é o paciente experienciar esta coisa do passado pela primeira vez no presente, ou seja, na transferência” (Winnicott, 1965r/1983, p. 8).
A possibilidade de não-integração sem medo de colapso se torna, então, um dos critérios de cura na psicanálise.
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